Cineteatro Iracema e Cine Braga

A quem interessa o Cineteatro Iracema?

O Cineteatro Iracema é mais que um edifício abandonado no coração de Vitória de Santo Antão, é um corpo vivo de memórias que resiste ao tempo. Inaugurado em 1947 pelos irmãos João Sabino e Luís Boaventura de Andrade, destacou-se por décadas como um dos principais espaços culturais da cidade, sendo a última e maior das seis salas de cineteatro que marcaram o século XX no município e que ainda está de pé (Lima, 2017). Com capacidade para mil espectadores, o Iracema pulsou como epicentro da vida artística e social da região até o final da década de 1970.

Por Raphael Bernardo

Após um longo período de inatividade, entre os anos 2000 e 2008, o espaço viveu uma nova primavera, voltando a funcionar principalmente como teatro e acolhendo criações locais, espetáculos de cidades vizinhas e, especialmente, o Festival de Teatro Estudantil da Vitória (MOSTEV). O festival, idealizado por artistas da cidade, foi responsável por instaurar uma vibrante cena teatral juvenil, formando novas gerações de artistas e criando um público ativo. Foi nesse contexto que muitos artistas, como eu, tiveram seus primeiros encontros com o teatro e com a potência

Desde 2008, o Cineteatro Iracema permanece de portas fechadas, tomado pelo abandono. Sua invisibilidade reflete não a ausência de artistas ou de memória, mas a falta de políticas públicas que garantam o acesso à cultura e a preservação de seus espaços. Como afirma Anatol Rosenfeld (1993), a ausência de um teatro pode passar despercebida, mas há lugares que, mesmo silenciados, continuam a pulsar. O Iracema é um deles. Salvaguardar sua memória é resistir ao esquecimento e afirmar a importância da cultura como direito e como presença viva no cotidiano da cidade.

Pensar o Cineteatro Iracema é, portanto, mais que revisitar um espaço físico. É reativar memórias coletivas, reconstituir os gestos de uma cidade que, mesmo diante da negligência, insiste em manter viva sua relação com a arte. Sua trajetória evidencia as lacunas deixadas pela ausência de políticas públicas consistentes para a cultura, mas também revela a força das iniciativas comunitárias, a potência dos festivais estudantis e a urgência de se salvaguardar e celebrar as histórias que resistem.transformadora da arte.

Fotos de espetáculos teatrais realizados nos anos 2000, recebidas durante ação Procuram-se Memórias esquecidas de artistas vitorienses.

COISA DE CINEMA

Naquela noite, o professor estranhou a pouca frequência de alunos na hora da chamada. Em outras turmas, também era notável a quantidade de cadeiras vazias e não demorou para este esvaziamento repentino chegar ao conhecimento do diretor. Doutor Osmar* não era médico nem tinha título de doutorado, mas passou a ser chamado assim por respeito e temor à autoridade que ele transmitia não só aos alunos, mas aos professores, pais e população em geral da pequena cidade de Vitória de Santo Antão.

Tamanho medo que ele era capaz de causar, não deve ter sido difícil conseguir informações de um dos poucos estudantes presentes na aula daquela noite. Talvez em um interrogatório severo, com ameaças às suas notas e serem entregues aos pais como cúmplices. Talvez apenas com sua rigidez militar, em um momento em que todos viviam tensos diante dos sumiços recorrentes de pessoas, mortes sem explicação e um ar de pavor velado, justificado por um bem maior que ninguém via**. Ou talvez alguém que, arrependido de estar na aula de álgebra e invejando os companheiros, deu com a língua nos dentes, entregando os outros sem titubear.

Fato é que doutor Osmar ficou sabendo do paradeiro de todos aqueles alunos e não pensou duas vezes: partiu em marcha, cruzando toda a escola e saindo pela portinha dos fundos, que quase não era usada. Ele atravessou a rua e caminhou até o cinema que existia ali, onde viu um cartaz em vermelho: Sônia Braga posava com olhar sensual, segurando um dos seios no seu vasto decote, – era estreia da Dama do Lotação*** e o Cine Braga estava lotado. A essa altura, com o rosto ruborizado de raiva e vergonha perante tamanha indecência e ousadia dos seus alunos, ele se encaminhou furioso aos funcionários do estabelecimento, exigindo que parassem a sessão imediatamente. Ninguém teve como argumentar diante daquele pequeno homem de ego gigante, ainda mais se tratando de jovens menores de idade, e logo acenderam as luzes da sala, parando a projeção da película. O público vaiou a princípio, mas logo se calou quando sua voz tomou conta do recinto, convocando todos os alunos do colégio para que se retirassem imediatamente. Os estudantes ficaram pasmos de vergonha. Por mais que fossem muitos, não tinham como ir de encontro àquela situação e, aos poucos todos se levantaram, sob o constrangimento dos olhares e risos do restante do público, abandonando a sala para serem tangidos pela rua de volta ao Colégio 3 de Agosto. Dizem as más línguas que depois de ter visto Solange – personagem de Sônia Braga no filme, que seduz homens desconhecidos nos ônibus da cidade – com sua imagem congelada e entregue ao prazer, em meio àquela confusão toda, tamanho foi o choque, que aquela se tornou a última vez que o doutor entrou em um cinema.

Por Débora Bittencourt

Cine Braga, onde hoje funciona a Lojas Americanas

Os cinemas como espaço de memória

Ouvi um fragmento desta e de muitas outras histórias, perguntando às pessoas de outras gerações sobre as suas memórias dos cinemas que existiam na cidade. Algumas inventadas, outras reais, outras não sabemos dizer. Como em toda cidade do interior, a oralidade segue presente no espalhar das notícias e na ficcionalização da vida real. De uma forma ou de outra, estes espaços foram palcos não só das histórias dos filmes e peças que passaram por eles, mas de toda essa gente que frequentou e viveu uma parcela de sua existência ali. Espaços como o Cine Braga – lugar desta história semi inventada, onde hoje funciona a Lojas Americanas –, o Cineteatro Iracema e, mais recentemente, o Cine Moderno, foram cenários de muitas vidas e contam muito sobre nossa cidade e seus personagens em suas entrelinhas.

Para Edson Ribeiro, produtor cultural à frente da Casa Mosaico – espaço onde, com muito esforço, dentro de sua casa, abriga atividades como cineclube, apresentações artísticas locais, oficinas e demais ações gratuitas – o Cine Braga e o Iracema foram lugares que permearam sua infância e juventude, contribuindo para sua formação pessoal e no seu desejo por um movimento artístico e na criação de um público espectador na cidade:

“Eu frequentava todos os filmes que passavam lá, sejam filmes para criança, sejam filmes para pessoas adultas, assim, acima de 18 anos: as pornochanchadas brasileiras, que era a época da ditadura, né, eu assistia tudo. (…) Eu adorava. Eu assistia Marcelino Pão e Vinho todo ano. E quando a fita quebrava naquela mesma cena, já estava acostumado. (Risos) Porque não tinha o que fazer, e Vitória, na época, era muito carente de atividades culturais. Eu lembro que durante todo esse período de adolescência, eu assisti uma peça, única. Foi no auditório do Colégio Nossa Senhora da Graça, de um grupo de teatro de amadores do Cabo, que veio encenar aqui uma peça, o nome se eu não me engano, acho que é de Luiz Marinho… O Santo e a Porca. E aí, eu fui assistir. Acho que foi a única apresentação teatral que eu vi. E foi uma coisa assim, que até se comentou "Ah, é uma pena que só tinham 8, 10 pessoas assistindo." E eles vieram do Cabo, se apresentar, tudo mais. Era uma Vitória muito carente dessas atividades culturais. A única coisa que tinha realmente, no dia a dia, era o cinema.”.

Cineteatro Iracema em várias fases. Acervo Raminho Fotógrafo

Além de ser uma das poucas opções de atividade para a juventude da época (além das praças e festas de discotecas em clubes como O Leão e O Camelo), era também acessível. O baixo custo dos ingressos em uma cidade de fácil mobilidade por seu tamanho reduzido, onde se conseguia circular, sobretudo a pé, era um incentivo às pessoas frequentarem estes espaços. Circular fora da cidade, como ir até o centro de Recife, também era uma possibilidade mais viável do que hoje, através da linha de trem, que funcionava na época conectando diretamente Vitória a outras cidades – uma forma de deslocamento também presente nas memórias de Edson:

“(…) Eu estudava no 3 de Agosto e às vezes a gente queria assistir filme em Recife. Eu fui assistir Hair em Recife… Fui várias vezes. E aí a gente fazia o seguinte: a gente ia pro 3 de Agosto e levava uma roupa por baixo, saía do 3 de Agosto e lanchava por ali mesmo, não ia nem em casa. Entrava no trem, descia no Recife, ia pro Veneza ou o São Luís, o São Luís, geralmente, que era mais próximo, que é ali na beira do rio. Ia pro São Luís e assistia o filme, saía de lá, lanchava, pegava o trem e voltava. E aí gastava nessa farra todinha tipo assim, R$ 5, R$ 6. Era tudo muito barato, porque o trem era centavos, você pagava 50, 60 centavos. O cinema também era baratíssimo.”.

Hoje, sem nenhum cinema de rua ou teatro (apenas um cinema comercial no shopping), Vitória de Santo Antão ainda exibe sua carência de espaços voltados à atividade artística e cultural, algo que, com o passar dos anos, vai criando cicatrizes irreversíveis em seu povo, atrofiando seu potencial cultural em relação a outras cidades do estado, criando uma população sem referências ou conhecimento da própria história, e expulsando pessoas e iniciativas por falta de espaço, incentivo e acolhimento.

Em 2023, fiz algumas fotos do prédio onde funcionou o Cineteatro Iracema. Fechado desde 2008, estava coberto de mofo e com várias partes caindo, era morada de pombos e morcegos, que se abrigavam e voavam tranquilos entre seus icônicos azulejos. Um ano depois, sua fachada foi reformada e pintada, mas suas portas continuam fechadas. Na sua calçada ainda funciona a feira, livre, indiferente à história e existência daquele prédio. Na lateral vemos um anúncio: Em breve, Cineteatro Iracema. Prestes a completar um ano e sem nenhuma atualização sobre a possível retomada do espaço, seguimos na espera de alguma mudança que vá além de uma maquiagem sobre o tempo de abandono e descaso que dali segue emanando.

*Nome fictício.

**Referência ao regime de ditadura militar, que tomou o Brasil entre os anos de 1964 a 1985, sendo um período marcado por censura à imprensa, restrição dos direitos políticos, e perseguição, tortura e morte dos opositores.

***O filme A Dama do Lotação, de Neville de Almeida, inspirado na obra de Nelson Rodrigues e estrelado por Sônia Braga, estreou nos cinemas em 1978.